08 de abril de 2010
0h 00
Flávia Nascimento - O Estado de S.Paulo
Acompanhei o caso Nardoni desde o início. Em 28/3, ao acessar o blog de Marcos Guterman (O Estado de S. Paulo), li pela primeira vez um artigo que de fato tocava em alguns dos graves problemas da sociedade brasileira revelados por esse horrível fait divers. A análise de Guterman acertava em cheio: sim, havia traços de fascismo no comportamento da turba ensandecida que durante toda a semana do julgamento esteve agrupada diante do Fórum de Santana para "acompanhar" os trabalhos dos jurados. Gostaria de acrescentar às reflexões de Guterman outras considerações.
Além da grande mídia brasileira, sempre disposta a brincar com fogo por resultados de audiência, também merecem severas críticas os Poderes instituídos e os responsáveis pela ordem pública, que nada fizeram para evitar as agressões sofridas pelos réus e pela família de um deles, Alexandre Nardoni.
O local do julgamento, por exemplo, deveria ter sido isolado e os agrupamentos ali, proibidos. Por que não? Lembremos que, quando uma estrela qualquer da pop music vem ao Brasil, as forças da ordem se prontificam a fazer um cordão de isolamento para que o artista se desloque confortavelmente. Os patrões da mídia eletrônica, porém, certamente não teriam permitido o isolamento do tribunal...
No que diz respeito à postura da magistratura brasileira neste caso, o que essa mídia nos deu a ver foi muito inquietante. Não vimos, entre os tantos juízes, promotores e desembargadores entrevistados por diversos canais de televisão e jornais de grande circulação, praticamente ninguém que apontasse tais problemas ou se insurgisse contra tantos abusos. A exceção que pude constatar foi um desembargador paulista convidado pelo canal de notícias da Globo (em horas noturnas muito tardias), o dr. Edison Brandão. Ele, no entanto, estava diante de um colega do Rio de Janeiro que o contradizia, dizendo-se satisfeito com o modo como o julgamento dos réus havia transcorrido. O magistrado carioca, como tantos outros ouvidos sobre o caso, não poupou elogios à prática do júri popular.
Ora, o júri popular é, no mínimo, controvertido. Parece legítimo perguntar se não deveria ser abolido. A defesa desse tipo de tribunal de júri me parece pura demagogia. Se estou certa, ele é herança da revolução burguesa e é claro que teve sentido naquele momento em que a burguesia ascendente derrubava o Antigo Regime. Hoje, contudo, é obsoleto e não está à altura de uma Justiça que se queira equilibrada, isenta, "científica" (respaldada por perícia) e que se pretenda serena (não emotiva). Basta pensar nos aspectos altamente técnicos de julgamentos desse tipo para se convencer de que nem sempre os cidadãos comuns estão de posse das ferramentas indispensáveis para opinar.
Segundo o desembargador Edison Brandão, a magistratura brasileira está dividida em relação à eficácia do júri popular e, no meio dos juristas, estão em curso atualmente várias discussões sobre essa prática (muitos são contra o júri popular, de acordo com o desembargador).
O julgamento do casal Nardoni teria sido o momento adequado para que tais discussões fossem levadas à sociedade brasileira, pois são de seu interesse. Em vez de contribuir para publicizar esse debate (utilizo aqui esse verbo em seu sentido primeiro, que nos vem do Iluminismo), a grande mídia ? tanto a impressa quanto a eletrônica ? preferiu escolher a dedo os experts entrevistados, dando a palavra apenas àqueles que aplaudem incondicionalmente a prática do júri popular. Mais uma prova de que há um grave déficit de debate democrático em nosso país, em que a informação é controlada por alguns poucos grandes grupos de comunicação que determinam as pautas a serem divulgadas de acordo com seus interesses privados, e não conforme os interesses gerais: não há nenhum espírito republicano.
Vejo no "caso Isabella" uma evocação da obra-prima de Fritz Lang: M., o vampiro de Dusseldorf (1931). O filme do mestre germânico, considerado por muitos como uma metáfora da ascensão do nazismo, foi baseado num fait divers célebre na Alemanha, ocorrido no final da década de 20 do século passado, quando um sádico aterrorizou aquela cidade com assassinatos em série de mocinhas, diante de uma polícia impotente. A comparação não vem do enredo em si, que nada tem que ver com o crime de São Paulo. Mas há algo de "M." no espetáculo assombroso propiciado pelos populares irados que, plenos de religiosidade (cartazes e camisetas invocando a justiça divina), atiraram pedras em camburões, urraram pela condenação dos réus ? um deles chegando a agredir fisicamente o dr. Roberto Podval, defensor do casal julgado (ele levou um soco na barriga em pleno fórum!) ?, violaram o espaço privado dos familiares de um dos réus (pichações insultantes nos muros da casa de seus pais) e, finalmente, comemoraram alegremente a leitura da sentença com rojões (um dos tios da menina assassinada declarou ter gostado daqueles festejos, que para ele lembravam "dia de jogo de futebol"...).
Também penso em Brecht, que teria sem dúvida visto nessas preocupantes manifestações sinais de mau agouro para o futuro da sociedade brasileira.
Não tenho meios para me pronunciar sobre a inocência do casal condenado, nem tampouco sobre sua culpabilidade (não teria por que fazê-lo, afinal não conheço o processo e nem sequer sou jurista). Mas, como cidadã brasileira, clamo pelo direito que esse casal teria tido ? e continua tendo, como qualquer um de nós que porventura venha um dia a ocupar justa ou injustamente o lugar de um réu ? a um julgamento realizado em condições de total respeito às leis brasileiras. Não creio que tais leis tenham sido respeitadas à risca.
Doutora em Letras e Ciências Humanas Pela Université de Paris X Nanterre, É Professora de Teoria Literária na Unesp
Fonte:http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100408/not_imp535442,0.php#noticia
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe o seu comentário.